terça-feira, 22 de março de 2011

A Ilusão do Breve, de Almeida Mattos: Um livro de maturidade

No âmbito das II Jornadas Literárias de Fafe, que decorreram auspiciosamente entre 14 e 21 de Março em diversos palcos culturais e educativos do município, foi lançada a mais recente obra poética do fafense António de Almeida Mattos, associado do NALF, com o título A Ilusão do Breve. Mais uma soberba edição da editora fafense Labirinto.
O livro, que tem desenhos singulares do artista Júlio Resende e belo design da filha Mariana, surge exactamente duas décadas após Conjuntivo Presente (editora Afrontamento, 1991). Antes, Almeida Mattos havia editado Golpe de Sol na Lucidez Amarga (1985) e O Quinto Elemento (1987).
A Ilusão do Breve é, assim, o quarto livro poético de um autor marcado pela preguiça e pelo trabalho esparso. Um poeta bissexto, diríamos.
Na apresentação, que decorreu na Biblioteca Municipal de Fafe, a professora doutora Isabel Pires de Lima, amiga do autor e de Fafe, onde regressou com grande alegria, considerou a obra “um livro de maturidade”, no qual se adivinham alguns balanços e ajustes de contas com o tempo, a memória e a vida. O próprio título da obra confirma essa ideia geral.
O autor volta também, nela, aos lugares comuns da sua trajectória poética. Por exemplo, o encontro entre o eu e o tu, um dos mais belos textos para Isabel Pires de Lima:

Há uma urgência de tu que me procura
ao mais pequeno ensejo, inusitada.
E em todo o lugar é sempre altura
de acender a luz à madrugada. (p. 48)

Outro dos lugares comuns será a sensorialidade da poesia de Almeida Mattos; uma poesia dos sentidos:

Certos no fruir de pêlo a pêlo
toda a pele em febre, sequiosa
em suor de prazer, no que modelo
novelos de nervuras acirradas
ao limite da dor, até ruptura
que fosse do sentir multiplicada
por fome, sede, morte de ternura. (p. 28)

Outros dos aspectos a considerar é a atenção às sonoridades: a poesia do autor é música, integrando consonâncias, aliterações, rimas:

Ao lábio lento, leve, ágil, sábio
a melodia branda que enfeitiça
no trilar hábil. Incauta se abandona
já de si própria ferida.
E dentro oscila a procurar-se enferma
de seu enleio, a suspensão cativa
flébil modula a explosão serena,
débil usura, a seiva soma
o som, a vida. (p. 47).

Isabel Pires de Lima aludiu à atenção do poeta para o acto criativo e o poder criador da palavra:

Quero dizer-te ainda que a memória
constrói este desejo: a linha enovelada
de tanta sensação, no corpo inscrita
por sentidos argutos e por mitos,
que se convoca agora, aqui – diria: sempre
houvesse algum limite nas palavras.
Aqui, agora, disse, quando digo,
e já tempo e lugar serão diferentes. (p.16)

Estamos perante um ajuste de contas com a memória, num “escavacar constante do poema”.

Tudo quanto te digo é só memória
que recupero e projecto contra a lâmina
a cortar vida no momento exacto,
finíssimo, restrito do presente.
E tudo quanto digo era passado
sendo que foi o que seria sendo. (p. 13)

Neste poema está todo o livro. É uma espécie de metáfora de todo o seu conteúdo, fundindo os tempos, o passado e o presente.
Um livro que experiencia algum desencanto, a ilusão da breve eternidade do amor.
Uma obra breve (60 pp.), mas enorme no seu dizer poético, na aventura da palavra, no alongamento da memória, na exegese literária que a conforma, nos grandes temas com que se confronta, e todos nos confrontamos: a vida, a morte, o amor, o passado, o futuro. O sentido de tudo isso, ou o absurdo de que se tecem os dias.
Um livro que enriquece a literatura nacional e enobrece um dos maiores poetas fafenses da actualidade, sem qualquer dúvida.

Fotos: Manuel Meira Correia

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